sexta-feira, 30 de setembro de 2011

CNJ diz que são suspeitos de crimes 35 desembargadores. Destes, 20 já sofreram punições do conselho, que podem ser anuladas pelo STF. Acusações contra juízes e ação que pode retirar poder de investigação do CNJ causam guerra na cúpula do Judiciário FSP 29.09

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Ao menos 35 desembargadores são acusados de cometer crimes e podem ser beneficiados caso o STF (Supremo Tribunal Federal) decida restringir os poderes de investigação do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), órgão que fiscaliza o Judiciário.

Os desembargadores são juízes responsáveis por analisar os recursos contra sentenças nos tribunais de Justiça. Formam a cúpula do Judiciário nos Estados.

O Judiciário foi palco de uma guerra esta semana após declaração da corregedora nacional de Justiça, Eliana Calmon, de que o Poder sofre com a presença de "bandidos escondidos atrás da toga".

A corregedora tenta evitar que o Supremo restrinja a capacidade de investigação do CNJ ao julgar uma ação proposta pela AMB (Associação dos Magistrados do Brasil).

O caso seria analisado na sessão de ontem, mas os ministros adiaram o julgamento para buscar uma saída que imponha limites ao CNJ sem desgastar a imagem do Judiciário.

Dentre os 35 desembargadores acusados de crimes, 20 já foram punidos pelo conselho -a maioria recorre ao STF para reverter as punições. Os demais ainda respondem a processos no âmbito do CNJ.

Dependendo do que decidirem os ministros do STF, os desembargadores acusados poderão pedir em juízo a derrubada das punições e das investigações em andamento.

Os casos envolvem suspeitas de venda de sentenças, favorecimento a partes pelo atraso no trâmite de processos e desvios de recursos, entre outras acusações.

INVESTIGADOS

Considerando também os juízes de primeira instância, cerca de 115 investigados podem ser beneficiados caso a ação da AMB seja vitoriosa.

A entidade defende a tese de que o CNJ não pode abrir processos contra juízes sem que eles antes sejam investigados pelas corregedorias de seus próprios tribunais.

O debate ocorre sob alta temperatura e opõe Eliana Calmon e o presidente do STF, ministro Cezar Peluso (que também preside o CNJ). Peluso reagiu duramente à declaração de Calmon, coordenando a redação de uma nota de repúdio às frases da corregedora, que considerou genéricas e injustas.

Ontem, o ministro Gilmar Mendes defendeu a corregedora ao dizer que sua declaração foi motivada pelo resultado positivo do trabalho da corregedoria do CNJ.

Mendes disse que vê com bons olhos a tensão entre os órgãos do Judiciário. "Vamos fazer do limão uma limonada", disse sobre o debate.

MAÇONARIA

Um dos principais casos analisados pelo CNJ envolve desembargadores do Mato Grosso, afastados pelo CNJ sob acusação de desviar verba do Tribunal de Justiça local para socorrer uma instituição da maçonaria. O processo está suspenso por meio de liminar. Os envolvidos negam as acusações

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PASQUALE CIPRO NETO. Que falta fazem as aulas de filosofia...

Será tão difícil ficar no que efetivamente se diz e não enxergar relações inexistentes nos textos? FSP 29.09

NA SEMANA passada, tratei da lamentável peça publicitária da Caixa Econômica Federal em que o grande Machado de Assis foi "embranquecido". Relembro esta passagem do meu texto, que o resume: "Alguém acha mesmo que nos dias de hoje alguém 'embranqueceria' Machado por preconceito racial? Nem o mais ardoroso e idiota adepto da Ku Klux Klan teria a 'brilhante' ideia de 'embranquecer' na TV o grande Machado. Será que o problema não é outro? Será que o problema não se chama pura e simplesmente desinformação? Ou (...) ignorância?".

Como eu já esperava, choveram mensagens (quase todas civilizadas) de leitores que me consideraram ingênuo por acreditar que a verdadeira razão do "embranquecimento" de Machado não foi o racismo (velado, explícito, contumaz, contido no DNA dos brasileiros etc., etc., etc.) ou (!!!) por eu acreditar que não há mais racismo no Brasil etc. Muitos me sugeriram a leitura dos livros X, Y e Z, que tratam da negritude, do racismo velado ou explícito blablablá, blablablá.

Que falta fazem as aulas de filosofia (já não as há nas nossas escolas, com raras exceções)! No ginásio e no colégio, no querido M.M.D.C. (escola pública da Mooca, em São Paulo), tive a subida honra de ser aluno do grande professor de filosofia João Paixão Netto, que já mora no céu. Paixão nos ensinou a ler, a raciocinar logicamente, a trabalhar com textos filosóficos sem neles enxergar o que não há, ensinou-nos a levar em conta as verdadeiras relações que há entre as afirmações presentes num texto.

Quando afirmei que nos dias de hoje ninguém "embranqueceria" Machado na TV por preconceito racial, empreguei a expressão "por preconceito racial" como adjunto adverbial de causa. Em outras palavras, essa expressão adverbial, que se refere a "embranqueceria", indica a causa do processo expresso por essa forma verbal (na verdade, indica a não causa, já que afirmo que ninguém embranqueceria Machado na TV por preconceito racial).

Pois bem. Essa passagem sobre a (não) causa do "embranquecimento" de Machado na TV não permite que ninguém conclua que há nela alguma afirmação sobre o racismo ou o não racismo (velado ou explícito) dos produtores da peça, da direção da CEF, da sociedade brasileira ou de quem quer que seja.

Repito aqui parte do que escrevi a alguns leitores: "Com todas as letras, condenei o trabalho da agência, cujo produto (um filme em que Machado é 'branco') resulta claramente do despreparo de seus idealizadores, executores etc. Não nego nem afirmo a possibilidade de, por trás desse despreparo, haver uma cultura racista (racismo velado ou explícito). Como deixo subentendido no texto, não me parece provável que nos dias de hoje alguém se disponha a uma atitude cretina como a de 'embranquecer' deliberadamente Machado na TV, improvável até mesmo para o mais idiota dos racistas. Alguém que detenha a conta da publicidade da CEF vai querer perder esse cliente vinculando-o a uma postura racista? Ainda que o publicitário fosse racista, ele certamente estaria atento ao que o seu cliente quer, não? Será que a CEF quer que sua imagem seja vinculada a preconceito etc.? Meu texto é claro: diz com todas as letras que Machado não era branco e que a agência foi, no mínimo, negligente".

Em suma, caro leitor, tratei do ponto a que se chega por desinformação, ignorância e, por que não dizer, prepotência. Será tão difícil ficar no que efetivamente se diz e não enxergar relações inexistentes nos textos? É isso.

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COMPUTAÇÃO

Novo tipo de análise para exame do coração prevê risco de morte FSP 29.09

DE SÃO PAULO - Um dos mais antigos exames médicos para checar a saúde do coração acabou de ganhar uma validade extra, graças à computação.

Isso permitiu prever com mais clareza o risco de morte de pacientes que tiveram um ataque do coração e sobreviveram a esse choque inicial.

A equipe liderada por Zeeshan Syed, da Universidade de Michigan, EUA, usou técnicas computacionais para filtrar os resultados de horas de eletrocardiogramas.

As análises dos exames identificaram três diferentes anormalidades cardíacas e indicaram que aqueles pacientes com pelo menos uma delas tinham até três vezes mais risco de morrer um ano após o ataque cardíaco.

Syed e colegas identificaram "biomarcadores" no padrão elétrico dos corações de 4.557 pacientes estudados ao longo de dois anos -coisas que mesmo exames de sangue não detectariam.

São sutilezas no ritmo do coração que só seriam descobertas por uma varredura minuciosa. A pesquisa está publicada na revista "Science Translational Medicine".

"Os métodos atuais para determinar quais vítimas de ataque cardíaco precisam dos tratamentos mais agressivos identificam grupos de pacientes com alto risco de complicações, mas deixam escapar até 70% das mortes", declara Syed.

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Jornada de Lutas arranca conquistas para a Reforma Agrária MST.org.br 26.09

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Após uma semana de lutas, o Acampamento Nacional da Via Campesina, instalado em Brasília, chegou ao seu final nesta sexta-feira (28/8), com o retorno positivo do governo às reivindicações da organização.

Em um dia de intensas negociações dentro do Palácio do Planalto, os 4.000 acampados permaneceram, desde 10h, às portas do Ministério da Fazenda. No fim da tarde, a mobilização retornou ao acampamento.

O ministro da Secretaria Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, em nome da presidenta Dilma Rousseff, apresentou as respostas do governo aos Sem Terra no acampamento (veja mais fotos)

“A primeira grande conquista que vocês conseguiram foi que o governo recolocasse a reforma agrária na sua pauta”, afirmou.

A principal conquista anunciada pelo ministro foi a suplementação de R$ 400 milhões no orçamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para obtenção de terras.

Além disso, houve a liberação dos R$ 15 milhões do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), que estava contingenciado, e será implementado o Programa de Alfabetização Rural, nos moldes propostos pela Via Campesina.

O governo vai financiar também um programa de agroindústria em assentamentos, com R$ 200 milhões para projetos de até R$ 50 mil e outros R$ 250 milhões para projetos até R$ 250 mil.

Para o dirigente do MST e da Via Campesina João Paulo Rodrigues, o conjunto das respostas do governo federal é uma “conquista importantíssima”, saldo da mobilização de uma jornada que mobilizou 20 estados e mais de 50 mil trabalhadores rurais.

Segundo ele, o problema da dívida dos pequenos agricultores e assentados, que somam cerca de R$ 30 bilhões, não foi respondido de forma satisfatória. “Estamos felizes, mas não com a proposta da dívida. Sabemos que a luta continuará”, projeta.

A proposta do governo permite que os endividados acessem um crédito de até R$ 20 mil, com juros de 2% ao ano, e prazo de pagamento de sete anos para quitar as dívidas atuais. Com isso, libera os camponeses para acessar novos créditos no Pronaf. Os movimentos do campo reivindicavam a anistia da dívida.

Gilberto Carvalho reconheceu que o governo saiu das negociações em dívida com povos indígenas, quilombolas e os atingidos por barragens, mas enfatizou que o governo retomará a política de homologações de terra e que novas conquistas sairão da mesa permanente que o governo mantém com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

A próxima reunião entre o governo e a Via Campesina já está marcada para o dia 21 de setembro.

As conquistas da Via Campesina na jornada de lutas

- R$ 400 milhões para o orçamento do Incra para obtenção de terras para a Reforma Agrária.

- Liberação de R$ 15 milhões contingenciados do Pronera.

- Programa de Alfabetização Rural, nos moldes propostos pela Via Campesina.

- Agroindústria em assentamentos: R$ 200 milhões para projetos de até R$ 50 mil e outros R$ 250 milhões para projetos até R$ 250 mil, todos esses créditos a fundo perdido.

- MDA e Incra devem apresentar entre 7 e 10 de setembro um plano emergencial de assentamento até o fim do ano, mas também com vistas até 2014.

- Dívida: crédito de até R$ 20 mil, com juros de 2% ao ano e prazo de pagamento de sete anos, para quitar as dívidas atuais, liberando o acesso a novos créditos no Pronaf.

- Inclusão das áreas de Reforma Agrária no Programa de Habitação que o governo anunciará semana que vem.

- Produção Agroecologia Integrada e Sustentável (PAIS) terá recursos necessários para os projetos apresentados.

- Instalação de Grupo de Trabalho para elaborar nova regulamentação para uso dos agrotóxicos.

- Implementação de 20 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFETs)

- Cultura: criação de editais para bibliotecas, cinema e produção audiovisual, específicos para o campo.

- Programa de liberação de outorgas para rádios comunitárias em assentamentos.

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Sob pressão, STF mantém poder de investigação do CNJ. Para esfriar crise, STF adia julgamento que pode limitar poder de corregedoria O Estado de S. Paulo - 29/09/2011

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Acordo costurado por Gilmar Mendes mantém controle externo da Justiça e tenta evitar agravamento do conflito entre Eliana Calmon e Cezar Peluso

A crise no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a ameaça do Congresso de intervir no caso levaram ontem os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) a buscar um acordo sobre as competências do órgão de controle externo. Pelo que foi acertado, as corregedorias dos tribunais locais terão um prazo determinado para tomar providências sobre denúncias contra os magistrados. Somente quando esgotado esse prazo, e se não houver nenhuma medida concreta, a Corregedoria Nacional terá carta branca para processar o juiz suspeito de irregularidade e cobrar responsabilidades do corregedor local.O acordo vinha sendo discutido havia alguns dias em conversas separadas e reservadas entre ministros da corte. Mas a crise entre a corregedora nacional, ministra Eliana Calmon, e o presidente do STF, Cezar Peluso, precipitou o entendimento. Eliana, em entrevista, apontou a existência de "bandidos de toga" e foi repreendida por Peluso. A tensão máxima na cúpula do Judiciário levou ao adiamento ontem da votação da ação movida pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), que quer ver reduzidos os poderes do CNJ.

Quem faz as vezes de mediador é o ministro Gilmar Mendes. O acordo deverá estar expresso no voto do ministro Luiz Fux, em data ainda não definida, pois cabe ao presidente do STF decidir quando o caso voltará à pauta. Conforme as regras da corte, todos os ministros votam e expressam seus pontos de vista. Assim, Fux expressará seu entendimento do caso e marcará o "voto vencedor".

Nessas conversas reservadas, os ministros perceberam que um meio-termo seria viável. Passaram a discutir a necessidade de estabelecer um critério objetivo para a atuação das corregedorias dos tribunais locais e do CNJ. Sem a definição de prazos, as corregedorias locais, que não funcionam, levavam a passos lentos as investigações, uma forma de contribuir para a prescrição das acusações contra os magistrados. Quando percebia a manobra, o CNJ avocava o processo, mas acabava sendo acusado de interventor pelos tribunais locais. Com a definição de critérios objetivos, o CNJ poderá cobrar responsabilidade dos corregedores locais e terá reconhecida competência para investigar juízes quando perceber que manobras corporativistas contribuirão para a impunidade.

Antes do julgamento de ontem, o ministro Gilmar Mendes já antecipava que um acordo estava próximo. Disse não haver discórdia irremediável entre os que defendem a tese de que o CNJ pode abrir processos contra magistrados, independentemente de terem sido investigados pelas corregedorias locais, e os que encampam a ideia de que só os tribunais locais têm competência para instaurar investigações contra os magistrados.

"Não vejo que haja antinomia absoluta entre aqueles que preconizam uma ação efetiva do Judiciário e os que defendem a subsidiariedade (quando o CNJ atua apenas de forma auxiliar aos tribunais). A subsidiariedade também é um conceito relativo: significa dizer que o órgão que está mais próximo, que está em condições de atuar, deve fazê-lo. Se ele não o fizer, o outro terá de exercer sua função", afirmou Gilmar Mendes.

Acordo. O pacto informal entre os ministros pode encerrar a polêmica que culminou na reação ontem de todos os conselheiros do CNJ às declarações da ministra Eliana Calmon. Em entrevista à Associação Paulista de Jornais (APJ), ela afirmou haver na Justiça "bandidos de toga". A reação do CNJ foi capitaneada pelo presidente do Supremo, Cezar Peluso. Em nota aprovada por unanimidade, o conselho repudiou as declarações que considerou levianas.

Anteontem, Peluso decidira manter o processo em pauta, mas ontem, antes de iniciada a sessão, confirmou aos ministros que o julgamento seria adiado. Não havia clima para o caso.

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Alegria a todo custo. Com um passado sofrido, o palhaço Psiu abraçou o riso como meta de vida. Hoje, além de animar festas infantis, dedica-se a ajudar comunidades carentes, cuja realidade conhece de perto. Correio 30.09

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À procura da verdade

Premiado com sete Candangos em 2005, o baiano Edgard Navarro volta à cidade com seu segundo longa-metragem, O homem que não dormia, idealizado há mais de 30 anos

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Ver O homem que não dormia projetado na tela do Cine Brasília resolve uma angústia que perseguia o baiano Edgard Navarro há décadas. É apenas o segundo longa do diretor de 62 anos, que, em 2005, venceu sete prêmios com Eu me lembro.

E, ele avisa, pode muito bem ser o derradeiro. “Sinto que esse filme é o último representante de um ciclo, que termina uma busca. Não a minha busca na vida, isso só termina quando eu morrer. Agora, quero buscar de outra forma”, reflete. Navarro faz perguntas com a câmera desde 1976, quando começou a rodar seus primeiros “rabiscos” em Super-8. Com o título que concorre ao Candango e será apresentado ao público hoje à noite, ele acredita ter obtido as respostas de que precisava.

Antes mesmo de entrar numa extensa carreira de curtas e médias-metragens — como Porta de fogo (1985) e Superoutro (1989) —, o realizador já tinha o roteiro de O homem que não dormia pronto. Em 1978, com 28 anos, elaborou o primeiro argumento, fortemente influenciado por escritos do psiquiatra Carl Jung: uma fantasia em que cinco pessoas, moradoras de um humilde vilarejo, “sonham o mesmo sonho ou o mesmo pesadelo”. A vinda de um forasteiro de intenções desconhecidas à cidadezinha confronta consciências e traz à tona um histórico de crueldades cotidianas.

A trama, aponta Navarro, não é tão autobiográfica como Eu me lembro, mas é motivada por mitos que ele conhece há décadas. “Desde a minha infância, ouço falar de botija de ouro enterrada e que quem enterrou foi amaldiçoado, não morreu direito. E precisava de alguém que desenterrasse isso. O filme é criado a partir de uma coisa que já existe no imaginário popular, o tesouro enterrado, para falar de um tesouro que, de alguma forma, o ser humano possui, que tem a ver com a verdade da sua vida”, delineia.

No limite

A descoberta dessa verdade pelos personagens é impedida pelo que o baiano chama de má educação: uma hipocrisia necessária, que tolera os defeitos do outro até certo ponto. “Para viver em grupo, tem sempre que fazer um teatro, um disfarce”, exemplifica. Na história, as pessoas estão a ponto de perder as estribeiras por conta das mentiras. “Elas estão no limite do suportável, estão ficando fora de controle. O filme pega essa tensão dramática, esse pressuposto de uma doença psicológica que é coletiva, mas para falar de uma doença da sociedade em que vivemos, dos mundos que estão próximos de nós. O mundo humano criado em torno das pessoas as escraviza. Algumas delas se rebelam até inconscientemente”, analisa.

Apesar de situado nos dias atuais, no distrito de Igatu, “umbigo” da Chapada Diamantina, a película revela uma carga profunda de autoridade política e religiosa. É como se o poder de uns poucos transformasse a maioria em meros “ordeiros”. Navarro não tem medo, portanto, de dar vazão a situações que talvez atinjam em cheio o espectador. “O filme não faz concessão. Vai fundo ou pretende ir fundo em coisas que são incômodas. Nas minhas propostas, sempre trabalhei com coisas que incomodavam muito. Essa coisa do excremento, do palavrão, da sexualidade exacerbada”, justifica.

O diretor ainda não sabe se larga o cinema em definitivo. Pode rumar para a literatura ou para a poesia — blog, nem pensar, porque acha que não tem disciplina suficiente para alimentar com regularidade uma página pessoal. Mas, livre do projeto que o “impediu de ser feliz”, mas que o fez encontrar alguma paz, sente que pode fazer o que quiser, com a leveza criativa e também caótica dos primeiros trabalhos. “Quero continuar com a jovialidade de sempre”, afirma. “É como se eu tivesse sido liberado de uma sentença. O que quero é fazer filme ou não fazer filme. Viajar ou não viajar.”

» O “primeiro longa”

» Talento demais (1999), documentário de 70 minutos sobre o cinema baiano, foi rodado em formato de vídeo e teve distribuição limitada. Exibido em versão reduzida (50 minutos) no Canal Brasil, o filme seria, segundo Navarro, mais um experimento de avaliação e crítica da produção regional do que um longa-metragem oficial. “É um jogo de palavras com o cinema baiano, que tem talento, mas está lento demais”, brinca. “Fala sobre política audiovisual. É uma resenha histórica desde os primórdios: ciclo baiano, Glauber Rocha, as políticas de governo. Ainda estávamos sob o regime de Antônio Carlos Magalhães. Fazia muito tempo que não botavam grana nenhuma. Isso ajudou a alavancar, com o movimento de classe, um novo momento, em 2001, que premiaria o primeiro longa depois de uma grande ausência. É aí que entra o Eu me lembro”, recapitula.

44º FESTIVAL DE BRASÍLIA

Até 3 de outubro. Mostra competitiva às 20h30 no Cine Brasília (106/107 Sul), com ingressos a R$ 6 e R$ 3 (meia). Exibição simultânea no Teatro de Sobradinho, no Cinemark Taguatinga Shopping e no Teatro Sesc Newton Rossi (Ceilândia Norte), com ingressos a R$ 4 e R$ 2 (meia). Não recomendado para menores de 14 anos.

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44º FESTIVAL DE BRASíLIA DO CINEMA BRASILEIRO » Querido estranho.

Na segunda noite de competição, o longa paulista Trabalhar cansa instiga o público com uma combinação inusitada de drama social, horror e comédia Correio 30.09

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A produtora Sara Silveira (D) e a equipe de Trabalhar cansa antes da exibição do longa, no Cine Brasília: "Amo este festival, amo este público. Sempre que subo aqui, me tremo toda"

Primeiro, o riso. Logo em seguida, o susto. Diante das surpresas de Trabalhar cansa, longa-metragem exibido na segunda noite da mostra competitiva do Festival de Brasília, as duas reações às vezes se embaralhavam. Escolher apenas um gênero cinematográfico para definir a criação da dupla Juliana Rojas e Marco Dutra parecia inviável. Mas, sem abandonar poltronas, o público do Cine Brasília aceitou a provocação dos diretores paulistas e acompanhou com curiosidade o concorrente de maior prestígio internacional na disputa por Candangos. Exibida na mostra paralela Um Certo Olhar (no Festival de Cannes) e finalista do prêmio Sundance/NHK, a produção oscila entre o realismo social, o horror e a comédia dark. Trata, acima de tudo, de um tema que é familiar aos espectadores: os tormentos da classe média.

“A estranheza do filme às vezes não é tão bem recebida pelas pessoas”, admitiu Marco Dutra durante o debate de ontem, no Hotel Kubitschek Plaza. “No início, tínhamos uma sinopse sobre relações de trabalho.

Mas, como gostamos de elementos bizarros, desenvolvemos o argumento, inserindo morbidez na história”, comentou. A combinação inusitada, no entanto, não afugentou os brasilienses. “As pessoas riram nos momentos em que o humor era o forte, se assustaram...”, observou Juliana Rojas, logo após a projeção. “Senti que o público embarcou na nossa ideia, e percebeu as nuances de suspense, drama e comédia”, avaliou Dutra, que exibiu em Brasília, há seis anos, o curta Concerto número 3.

O duo, estreante na competição de longas, instigou a plateia ao mergulhar pacientemente no inferno doméstico de um casal (Helena Albegaria e Marat Descartes) ameaçado pelos assombros do desemprego e das relações entre patrão e funcionário. Segundo Juliana, o tom medonho de algumas cenas foi encenado sem baques, numa progressão tranquila às experiências dos curtas da dupla, como As sombras (2009) e Um ramo (2007). “Os elementos de terror provocam um outro tipo de reflexão. Na minha família, de ascendência indígena, muitas histórias eram contadas. Aprendi a lidar de uma forma natural tanto com o realismo quanto com a fantasia”, explicou a diretora. “O público da cidade é muito exigente, gostei muito da reação no fim”, comentou a produtora Sara Silveira.

Prestígio

Na apresentação dos filmes da noite, foi Sara quem dominou a cena. Habitué do Festival de Brasília, onde exibiu os longas vencedores É proibido fumar e Bicho de sete cabeças, ela afirmou que fez questão de inscrever Trabalhar cansa na capital — e que, para não ficar de fora da edição, adiou a data de lançamento do filme, que estreia logo após o evento. Exibido no Festival de Paulínia “por questões contratuais” (foi coproduzido pelo polo cinematográfico), o longa venceu o troféu de melhor som e um prêmio especial do júri. “Amo este festival, amo este público. Brasília tem um negócio engraçado, sempre que subo aqui, me tremo toda. Este é um dos lugares que mais respeito, o meu templo”, comentou a produtora, aproveitando o momento para um apelo político. “Fiquei muito feliz quando vi Brasília protestando contra a corrupção no dia 7 de setembro”, elogiou, sob aplausos.

Apesar do entusiasmo nos discursos, o filme não deixou o Cine Brasília com estatura de franco favorito. Para uma parte da imprensa que compareceu à sala da Asa Sul, a exibição provocou uma inevitável sensação de déjà-vu — um grupo de jornalistas que já havia conferido o filme abandonou a sessão logo após os curtas. A reprise, no entanto, não incomodou o ator Marat Descartes, que só começou a analisar o filme depois das sessões de Cannes e de Paulínia. “É interessante. Cada vez que assisto, enxergo camadas que eu não havia reparado”, analisou o intérprete do personagem Otávio.

Curtas em alta

Mais do que o longa da noite, no entanto, foi o curta paranaense Ovos de dinossauro na sala de estar que conquistou a maior adesão do público — os aplausos mais fortes da edição, até aqui. O documentário retrata, em planos fixos, o depoimento da norueguesa Ragnhild Borgomanero, empenhada em zelar pela memória do marido, Guido, um colecionador de fósseis. As declarações de amor da personagem, pronunciadas com sotaque carregado, provocaram risos, comoção e palmas em cena aberta — e o curta saiu da sessão como forte candidato ao Candango de júri popular. “É um filme difícil, com takes longos. Fiquei muito feliz e emocionado com a forma como ele foi recebido”, afirmou o diretor Rafael Urban. As animações 2004 e Moby Dick não empolgaram.

Num tom mais sóbrio, o documentário A casa da vó Neyde surpreendeu pela franqueza: ele expõe a relação entre a avó do diretor, Caio Cavechini, e o tio, viciado em crack. “Não é um filme simples, mas ouvi umas fungadas”, comentou o cineasta, ao fim da projeção. “A ideia não era fazer um curta, mas gravar essas imagens para convencer o meu tio de que a situação dele havia chegado a um ponto insustentável. Mas aí percebi que era melhor dividir do que guardar essas aflições”, afirmou. Não são todos, no entanto, que assimilam com tranquilidade o choque provocado por cenas em que o tio de Caio usa crack. A mãe do diretor, apesar de dar o curta de presente para conhecidos, ainda não teve coragem de vê-lo. E já disse a ele que nunca vai assistir.

* Colaboraram Maíra de Deus Brito e Mariana Moreira

"É um filme difícil, com takes longos. Fiquei muito feliz e emocionado com a forma como ele foi recebido"

rafael urban, diretor do curta ovos de dinossauro na sala de estar

CRÍTICA// Curtas

Moby Dick (animação), de Alessandro Corrêa. Remotas possibilidades para um amor perdido puxam a linha de nostalgia na narrativa, revestida de idealização e da estética construtivista russa, mas que reluz, em conteúdo, arte naïf. (Ricardo Daehn) **

2004 (animação), de Edgard Paiva. Ambientando o filme em redoma de silêncio, o diretor consegue demonstrar um discreto esforço de personagens solitários, que, introspectivos, pretendem romper com a comunicação nula e angariam, pela singeleza, alguma simpatia. (RD) **

Ovos de dinossauro na sala de estar, de Rafael Urban. Hábil em captar o espírito de constrição do rigor alemão, a realização perde o ritmo que dialoga com o estilo de vida da severa protagonista, disposta a entabular um sentimento de amor petrificado. (RD) **

A casa da vó Neyde, de Caio Cavechini. A isenção de uma câmera, por vezes acanhada, caminha num fio de navalha, ao abordar, sem reservas, os sentimentos conflitantes no coração de uma mãe esforçada em impor a nobreza da afeição na vida quase perdida do filho entregue ao vício do crack.

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"Focar no ineditismo é pouco". Francês radicado em São Paulo desde criança, o diretor comenta as mudanças do festival e fala sobre a briga, segundo ele desnecessária, entre cinema autoral e comercial. Para ele, o problema é a fragilidade do mercado Correio 30.09

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"Em Gramado, ou em Brasília, ao sabor das alterações das gestões, as pessoas vão experimentando um formato ou outro, tentando posicionar o festival no panorama das mostras. É preciso ter volume de projeções e presença de produtos diferenciados"

O parisiense Alain Fresnot desembarcou no Brasil com 8 anos de idade. E aqui, seu caminho cruzou com o do cinema: em 1976, graduou-se pela Escola de Comunicação de Artes da Universidade de São Paulo. No mesmo ano, apresentou, no Festival de Brasília, Trem-fantasma, seu primeiro longa-metragem, rodado em 16mm.

Voltaria muito tempo depois, em 2003, com Desmundo, vencedor dos prêmios de trilha sonora (John Neschling) e atriz coadjuvante (Berta Zemel).

Hoje, ele lança nos cinemas nacionais seu novo filme, Família vende tudo (leia mais no Divirta-se), que, ele lamenta, não foi selecionado para a atual edição do festival. Na conversa com o Correio, ele reflete sobre a fragilidade do mercado brasileiro e releva a polêmica da queda do ineditismo para os títulos em competição.

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POESIA » Versos cheios de inquietações

Ronaldo Cagiano lança O sol nas feridas, hoje, no Café Martinica Correio 30.09

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O sol nas feridas funciona como um inventário de inquietações e espantos. Por meio desses 63 poemas, Ronaldo Cagiano dá voz à carga de indignação com a qual vê o mundo. O novo livro de poemas que o escritor lança hoje no Café Martinica tem um pouco de muitas coisas. “O homem, as coisas em meio ao cipoal de contradições que tanto nos atormenta. Já dizia o poeta catarinense Lindolfo Bell, que ‘o lugar do poema/ é onde possa incomodar’. Sigo esse rastro. Se não for por essa trilha, a palavra poética não tem utilidade nem sentido para mim”, explica Cagiano.

Com poemas inéditos e outros publicados em jornais e revistas, O sol nas feridas é um retorno à poesia depois de 14 anos afastado dos versos. Na última década, Cagiano mergulhou na ficção, mas nunca abandonou o exercício poético. Ele classifica O sol nas feridas como uma obra híbrida, o que de fato fica claro nas temáticas abordadas ao longo do livro. O lirismo pontua alguns poemas, mas há muito da vivência cotidiana embutida nos versos e até uma postura narrativa.

Um poema para Isabella Nardoni, outro para o Plano Piloto e ainda uns versos desesperados endereçados a Murilo Mendes dividem as páginas com reflexões existenciais. “A poesia está em pânico, Murilo,/diante desse mundo/e seu quartel de demônios”, escreve Cagiano, depois de fazer um autorretrato e refletir sobre a rotina de bancário, já que o autor é também funcionário de banco.

“É uma poesia que reflete intimamente minhas inquietações e perplexidades com o nosso tempo, com a morte, com a nossa realidade e com o próprio lugar da arte e da literatura num mundo regido pelo mercado e premido pelos desafios de uma sociedade alvejada o tempo todo pela solidão e pela incomunicabilidade, aturdida pela insegurança e perdida nos escombros das utopias que ruíram nas últimas décadas”, avisa. E há muitas ruínas em O sol nas feridas.

Seja no gênero seja na linguagem, a poesia é o cerne da produção literária de Cagiano. “Quando escrevo, ou quando leio um livro de poesia, de conto ou romance, prendo-me principalmente no olhar poético que o autor pode conferir à sua obra. Algo que caminha na direção do que disse Baudelaire e que assimilei integralmente: ‘sê poeta, mesmo em prosa’. A construção, a forma literária que não incorpore verdadeiramente esse viés poético, não me satisfaz.”

O último livro de poesia havia sido publicado em 1997. Desde Canção dentro da noite, Cagiano só publicou prosa. No entanto, mesmo quando não está debruçado sobre versos, ele procura tocar adiante um exercício poético. Ele fala em simbiose para explicar como há trânsito entre as linguagens. “Ao contar uma história, persigo a intensidade e a subjetividade da prosa poética.

Independentemente da leveza ou densidade de uma história ou trama, vou à procura da linguagem que incorpore o legado filosófico da poesia, porque entendo necessário esse artifício, que é capaz de duelar com a secura, a porosidade ou a sisudez de um texto ficcional.” Cagiano gosta da ideia de territórios para falar da poesia. A escrita poética seria a linha que urde a escrita, um recurso harmônico, um espaço de permeabilidade.

O sol nas feridas

De Ronaldo Cagiano. Dobra Literatura, 152 páginas. R$ 30 Lançamento hoje, às 19h, no Café Martinica (SCLN 303, Bloco A)

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Festival traz 101 artistas eleitos por edital Correio 30.09

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Dividido em dois eixos, o 17º Videobrasil apresenta, além de Olafur Eliasson, 101 artistas na mostra "Panoramas do Sul", uma exposição que tem um ritmo de bienal de artes.

A particularidade do festival, contudo, segue no formato de edital, ou seja, qualquer um pode se inscrever para passar por um processo seletivo. Em bienais isso nunca ocorre. O curador escolhe ele mesmo quem quer mostrar. "Seguimos esse modelo porque é a melhor forma de incluir artistas que ainda não fazem parte do circuito, o que dá um caráter especulativo e, portanto, de risco [ao festival]", conta Solange Farkas, diretora do Videobrasil.

Nesta edição, os 101 artistas foram escolhidos a partir de 1.295 inscrições, vindos de todas a regiões do sul do planeta. "Essa premissa representa o aspecto político da mostra. Talvez chegue o momento em que, assim como não vamos mais tratar de uma só linguagem, o vídeo, não precisemos mostrar apenas artistas do sul, mas essa vitrine ainda é necessária", diz Farkas.

Entre os destaques deste ano estão o australiano Shaun Gladwell, o libanês Akram Zaatari e a brasileira Cinthia Marcelle.

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Documentário sobre a crise de 1929 parece ideal para agora Correio 30.09

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De "Marcas do Destino" (TC Cult, 22h, 14 anos) a "Macunaíma" (Canal Brasil, 0h30, 12 anos), não faltam boas opções hoje. Sem esquecer de "Chuva de Milhões" (TCM, 1h20, 12 anos), nem, para os madrugadores, do belo "Falsa Loura" (Canal Brasil, 4h20, 16 anos).

Mas o filme a calhar mesmo, para os dias que correm, é "1929 - A Grande Depressão" (Cultura, 0h, livre). Fala de um mundo feliz e ganancioso, em que a riqueza parecia ao alcance de todos. E depois do crack da Bolsa e suas sequelas econômicas, morais, psíquicas etc.

A devastação inigualável foi a grande crise do capitalismo. Mas, estranho, dia sim, dia não, parece que outra tempestade se arma dramaticamente parecida.

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CARLOS HEITOR CONY . O veneno da ditadura Correio 30.09

Apliquei a metáfora aos militares que, após tomarem o poder em 1964, mudaram de comportamento

Em crônica publicada na semana que passou ("Médicos e Monstros"), na qual criticava a demora em criar e fazer funcionar a Comissão da Verdade, apelei para o exemplo clássico da alteração de uma personalidade, exposta magistralmente por Robert Louis Stevenson em seu romance "Dr. Jekyll and Mr. Hyde".

É a história do médico de excelente formação moral e social que, descobrindo uma mistura química e testando-a em si mesmo, transforma-se num monstro assassino.

Apliquei a metáfora aos militares que, após tomarem o poder em 1964, mudaram de comportamento. Desde criança ouvia dizer que o soldado era "o povo fardado". Era o homem comum que tomava o compromisso de defender a pátria e a sociedade, não apenas em caso de guerra mas no dia a dia de uma nação.

Perderia tempo e espaço se fosse lembrar os muitos momentos em que os militares, pondo em risco a própria vida, cumpriram lealmente esse dever constitucional. Referia-me à exceção, cuja verdade agora começa a ser exigida nas ruas, na mídia e no Congresso.

Posso dar exemplos pessoais sobre a transformação que se operou na classe militar. Na minha primeira prisão, em 1965, havia um motivo para a repressão: em companhia de oito amigos, fizemos uma manifestação contra o presidente Castelo Branco, na porta do Hotel Glória, por ocasião de uma reunião da OEA. Fomos presos, mas tratados como devem ser tratados aqueles que violam determinada lei.

Na segunda vez, em 13 de dezembro de 1968, logo após a edição do AI-5, fui preso novamente, sem nenhuma motivação legal, mas encontrei no quartel do Batalhão de Guardas (RJ) o mesmo tratamento humano e, em alguns momentos, cordial, por parte dos militares. Eram cidadãos comuns que cumpriam o regulamento que entrara em vigor, mas respeitavam a dignidade dos detidos. Meu companheiro de cela era o jornalista Joel Silveira, que cobrira a FEB durante a Segunda Guerra. Ele recebia visita de generais que eram seus amigos.

Um tenente que dava serviço à noite comunicou que estava para se casar, mas ainda não tinha dinheiro para comprar os móveis. Joel telefonou para o Zé Aparecido, que era diretor do Banco Nacional, descolou um bom empréstimo para o tenente, que, meses depois, quando casou, convidou o Joel para a cerimônia.

Os militares ainda não haviam experimentado a poção mágica do poder, continuavam como homens comuns. Mas veio a diabólica transformação logo depois: nas quatro prisões seguintes, ficamos conhecendo o outro lado daquela turma que nos prendia. Nem Joel nem eu fomos torturados, mas passávamos a noite ouvindo os gritos dos torturados. Na hora das refeições, antes de chegar a comida, chegavam dois tipos de homens diferentes, verdadeiros armários que apontavam as armas enquanto comíamos não a comida normal dos quartéis, mas uma pasta que parecia os restos de outras refeições.

Nenhum diálogo, apenas ameaças. Nem banho de sol, obrigatório pela Convenção de Genebra. Nem visitas, nenhum contato com o mundo exterior, nem mesmo com a família, que não sabia onde estávamos e se estávamos vivos.

Voltando à prisão de 1968, quando a classe militar ainda não havia experimentado o veneno do poder. No Natal daquele ano, o comandante cujo nome não guardei, homem civilizado e gentil, surpreendeu a mim e ao Joel mandando vir, de sua casa, uma ceia completa, vinho, castanhas, fatias de peru, frutas, um cartão amável desejando não somente um feliz Natal mas uma rápida libertação. Que ocorreu duas semanas depois.

Evidente, estou tratando de um caso pessoal. Ao longo do país o tratamento aos presos não foi o mesmo. Houve milhares de torturados, desaparecidos e mortos.

Todos nós, principalmente os jovens que hoje se dirigem ao caminho das armas, precisamos ficar sabendo que a poção do poder que terão para defender a pátria e a sociedade pode transformá-los em monstros que repetirão, em escala impossível de prever, os crimes hediondos praticados durante aquele período.

Daí a necessidade de todos ficarmos sabendo como e por que se deu essa transformação. Precisamos conhecer a verdade.

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MARINA SILVA. Eliana Calmon. Correio 30.09

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A ministra Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça, é também corregedora nacional de Justiça e tem reconhecida trajetória dedicada ao combate à corrupção. Eventualmente é criticada por sua veemência, mas sua voz tem legitimidade e autoridade. Tenho convicção de que Eliana Calmon, de modo algum, quis generalizar ao asseverar existirem "bandidos de toga".

Não vejo razão para que sua frase, ainda que contundente e desconfortável para a grande maioria de magistrados corretos, seja entendida de modo generalizado e desqualifique o trabalho tão importante que ela vem fazendo.

O pano de fundo da polêmica são as atribuições do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que, segundo a Constituição, tem a missão de controlar a atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e o cumprimento dos deveres institucionais dos juízes, podendo para isso avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade, a aposentadoria ou outras sanções a magistrados que tenham cometido irregularidades.

Não há razão para limitar ou coibir a atuação do CNJ, tal como definida pela Constituição, no que diz respeito ao julgamento de juízes.

As corregedorias dos tribunais também são importantes na busca da transparência e do bom andamento do Judiciário, mas nada impede que trabalhem paralelamente ao CNJ.

Formado por magistrados e dirigido pelo mesmo ministro que preside o Supremo Tribunal Federal (STF), o conselho, obviamente, tem mais condições de julgar com o distanciamento necessário das relações locais e eventuais corporativismos.

Evidente que, quanto mais o Poder Judiciário for independente e livre para julgar de acordo com as leis e os elementos dos autos, mais forte é a democracia no país. Ninguém há de questionar essa premissa.

A ação do CNJ, portanto, não pode ser confundida com interferência ou controle indevido. É o Poder Judiciário que se aperfeiçoa e se fortalece na medida em que os maus juízes sofram sanções.

Já vencemos a fase em que os agentes públicos ou os Poderes da República eram isentos de questionamentos. Na democracia, é preciso cultivar e conviver com o exercício da crítica, essencial à qualidade da ação pública. Ninguém está acima do Estado de Direito.

O anseio do povo brasileiro é que as instituições sejam abertas à punição de seus membros, uma vez comprovada a culpabilidade.

Não é preciso dizer o quanto a impunidade faz mal para a sociedade. Não se põem amarras nas mãos de quem, como Eliana Calmon, faz a sua parte, dentro da lei e com severidade, para que nós possamos ser, de fato, uma sociedade desenvolvida.