terça-feira, 30 de novembro de 2010

Jovens diretores dão o tom em Brasília

Fonte: folha.uol.com.br 30/11

Festival reuniu a produção de cineastas iniciantes, de marca autoral e forjada nos circuitos dos cineclubes

Filmes foram realizados por equipes pequenas e misturam o real com a ficção; o resultado da competição sai hoje

Festival que já reuniu, ao redor da tela e das mesas de chope, figuras como Glauber Rocha (1939-1981), Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988) e Rogério Sganzerla (1946-2004), Brasília guarda ainda, a despeito dos altos e baixos destes 43 anos de existência, aura de espaço da resistência.
E foi com esse espírito que, no correr da última semana, um grupo de jovens diretores tomou de assalto o mais tradicional festival de cinema brasileiro.
Exceção feita ao carioca João Jardim, todos os diretores dos seis longas-metragens selecionados têm menos de 40 anos.
A idade está longe de ser o único ponto a uni-los. A competição deste ano, cujo resultado será anunciado hoje à noite, no Cine Brasília, legitimou uma produção forjada no circuito dos cineclubes e dos festivais menores, voltados ao cinema autoral. Mas que nova turma é essa?
Trata-se, em primeiro lugar, de uma geração que acredita em outros caminhos para o audiovisual.
Sem buscar reproduzir o cinema de alto orçamento, os novos cineastas tendem a trabalhar em sistema cooperativo, com equipes pequenas, a embaçar as fronteiras entre ficção e documentário e a trabalhar com atores não profissionais ou desconhecidos. Têm também a tecnologia como eixo: seja na feitura, na circulação ou no tema.

SEM FETICHE
"Acho que havia um desejo comum de que o universo do longa-metragem perdesse a imagem da grande estrutura e ganhasse uma aura mais leve", diz Felipe Bragança que, com Marina Meliande, fez "A Alegria", selecionado para a Quinzena dos Realizadores de Cannes e único concorrente que se constrói fortemente como fantasia, sem derivações documentais.
"Não temos o fetiche do cinema como algo inalcançável", diz Eryk Rocha.
"Sempre existiu, no cinema brasileiro, um olhar que passa pelo desejo de vencer dentro do capitalismo, dentro da indústria. Esta geração que está aqui acredita num cinema menor, mais democrático", completa Sérgio Borges.

BAIXO ORÇAMENTO
O filme mais caro do festival é "Transeunte", de Rocha, que não chegou a R$ 1,5 milhão. O documentário "Vigias" custou R$ 40 mil.
Nenhum deles mobilizou mais de 25 pessoas na equipe. Vários, como "Amor?", de João Jardim, foram feitos com menos de dez pessoas.
Muitos dos envolvidos nos projetos foram se conhecendo em festivais. E, como sempre acontece quando uma nova geração está sendo forjada, não são poucas as ligações entre os projetos.
O mineiro "O Céu sobre os Seus Ombros" tem o fotógrafo de "Vigias", a roteirista de "Transeunte" e três técnicos de "Os Residentes".
Tanto "O Céu..." quanto "Transeunte" apresentam-se como ficções, mas deixam o real invadir a cena. Isso, porém, não deve ser confundido com improviso.
Todos os filmes são absolutamente rigorosos com o aspecto plástico.
"Meu filme é uma manifestação estética", demarca Tiago Mata Machado, de "Os Residentes", que resvala na videoarte.
"O digital está dando uma volta, está indo buscar uma certa poesia, está recuperando a impureza do cinema."
Impuro e jovem, o festival de Brasília abriu uma nova janela para discutir o cinema brasileiro.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

&&&&&&

Livros eletrônicos: variedade, preços mais baixos e livrarias preocupadas

Fonte: The New York Times

Esta temporada natalina pode ser aquela em que os consumidores e os livros eletrônicos são corretamente apresentados. Os e-books estarão amplamente disponíveis em grandes lojas varejistas, a preços razoáveis. "Esta será a temporada que fará toda a diferença para os e-books -não há dúvida alguma disso", opinou Peter Hildick-Smith, presidente da empresa de pesquisas de mercado sobre livros Codex Group. "Mais livros serão vendidos em formato de e-book. Isso também significa que muito menos gente vai fazer compras em livrarias."
Apenas uma parcela pequena do público consumidor de livros já adquiriu um leitor eletrônico, mas analistas preveem que essa parcela pode crescer nas próximas semanas, quando os consumidores começarem a fazer suas compras natalinas. Em uma pesquisa de consumo recente, 10% dos adultos entrevistados -contra 4% em 2009- disseram que planejavam dar um livro eletrônico de presente este ano.
A intenção anunciada corresponde ao aumento verificado nas vendas de livros eletrônicos. Dois anos atrás, editoras disseram que as vendas de e-books tinham chegado a 1% das vendas totais de livros, mas a cifra atual está mais próxima de 9% ou 10%.
Um ano atrás, o Kindle dominava a seara dos leitores eletrônicos, e o aparelho conserva essa posição. Mas o Nook, da Barnes & Noble, e o iPad, da Apple, estão emergindo como concorrentes.
Em outubro, a Barnes & Noble lançou uma versão a cores do Nook, por US$ 249; há também o Kobo, vendido pelas redes Borders e Wal-Mart, e dezenas de outros leitores eletrônicos.
"Pensando na categoria dos leitores eletrônicos, os grandes nomes, no ano passado, eram Nook, Kindle e Sony, mas sobretudo Nook e Kindle, em termos de vendas", disse William Lynch, executivo-chefe da Barnes & Noble. "A diferença este ano é que há muito mais opções disponíveis."
James McQuivey, analista da Forrester Research, previu que o excesso de leitores eletrônicos oferecidos vai confundir os consumidores.
"A grande gama de opções vai causar perplexidade", disse McQuivey. "Quando isso acontece, o consumidor volta para aquelas marcas conhecidas, que suscitam confiança e que são bem cotadas na divulgação boca a boca."
A ênfase sobre leitores eletrônicos pode prejudicar as vendas dos livros de capa dura, que constituem um presente natalino tradicional, e essa perspectiva está preocupando donos de livrarias.
"Este é, sem dúvida, o ano da engenhoca, e a engenhoca deste ano é o leitor eletrônico", comentou Geoffrey Jennings, proprietário da livraria Rainy Day Books, de Fairway, Kansas.
"Muitas pessoas vão comprar essas coisas e vão dizer 'mas não é como ler um livro'", previu Jennings. "Por outro lado, haverá gente que ganhará um e-book e dirá que é uma engenhoca divertida. Agora, as pessoas se cansam de engenhocas, depois de algum tempo."
Editores insistiram que a expansão dos leitores eletrônicos não os preocupa.
Carolyn Reidy, presidente e executiva-chefe da Simon & Schuster, disse prever que as vendas de livros eletrônicos subam muito no Natal, quando as pessoas vão abrir seus aparelhos eletrônicos de leitura e imediatamente começar a comprar livros.

&&&

As mulheres sauditas não competem no esporte

Fonte: The New York Times
Quando a cavaleira olímpica saudita Dalma Malhas, de 18 anos, ganhou uma medalha de bronze em saltos ornamentais na primeira Olimpíada da Juventude em Cingapura, ocorrida em agosto, ela foi elogiada por Jacques Rogge, presidente do Comitê Olímpico Internacional.
"Esta é, de fato, a primeira vez em que uma atleta saudita participa de um evento internacional", o que dirá receber uma medalha, disse Rogge. Mas a reação no país muçulmano de Malhas vem sendo mais complicada.
A medalha levou a atleta ao centro de uma polêmica em torno de quais tipos de atividade atlética são aceitáveis para meninas e mulheres sauditas, se algum tipo for aceitável. As leis e os costumes que regem as vidas das sauditas estão entre as mais restringentes do mundo.
A separação entre homens e mulheres em locais públicos é rígida. Nas escolas femininas públicas da Arábia Saudita, as meninas são proibidas de praticar exercício físico, e mulheres não podem representar seu país em competições esportivas internacionais. Filha de uma cavaleira especializada em saltos ornamentais, Arwa Mutabagani, Dalma Malhas precisou custear suas próprias despesas olímpicas.
Em 31 de julho, o dissidente saudita Ali al Ahmed, diretor do Instituto para Assuntos do Golfo, lançou a campanha "No Women. No Play" (sem mulheres, sem jogo), exortando o COI a impedir a Arábia Saudita de competir nas Olimpíadas enquanto não autorizar a participação feminina.
Ahmed comparou a posição das mulheres sauditas à dos negros na África do Sul na era do apartheid, indagando por que o COI não suspendeu a Arábia Saudita de participar de Jogos Olímpicos, como fez com a África do Sul de 1964 até o fim do apartheid, no início dos anos 1990.
A carta olímpica afirma que "a prática do esporte é um direito humano" e que "discriminação contra um país ou uma pessoa com base em raça, religião, política, gênero ou outra é incompatível com a participação no movimento olímpico". Mas uma porta-voz do COI, Emmanuelle Moreau, indicou em e-mail que o COI não pretende censurar formalmente os países que não permitam a participação de mulheres nas Olimpíadas. "O COI busca assegurar que os Jogos Olímpicos e o movimento olímpico sejam universais e não discriminatórios", disse Moreau.
Fora das equipes olímpicas percebem-se alguns sinais de mudanças para as esportistas sauditas. Alguns times femininos particulares de basquete e futebol surgiram nas maiores cidades do país. Em 2008, Arwa Mutabagani tornou-se membro do conselho da Federação de Equitação da Arábia Saudita.
Lina al-Maeena, que, em 2003, fundou o Jeddah United -time de basquete feminino que cresceu e se tornou uma empresa de treinamento e administração esportiva-, espera que a pressão do COI possa ajudar a romper as barreiras à participação esportiva das mulheres.
"Em última análise, a carta olímpica diz que não haverá discriminação com base em gênero, religião ou etnia", disse. "E a Arábia Saudita não está cumprindo o exposto na carta olímpica."
Maeena disse que um olhar para os movimentos feministas globais a ajuda a conservar o otimismo. "Até a lei de 1972", disse, "as mulheres nos EUA não tinham igualdade de direitos nos esportes. E isso foi há três décadas apenas e em um país de 250 anos de idade. Nosso país tem apenas 78 anos."

&&&&&&

Plano Nacional de Cultura e pluralidade

Fonte: folha.uol.com.br 29/11

GILMAR MACHADO

Este plano visa propiciar o desenvolvimento cultural e integrar as ações do poder público para a valorização do patrimônio cultural brasileiro

O Congresso Nacional aprovou o Plano Nacional de Cultura (PNC). O ato representa valorização e democratização de uma das maiores riquezas do nosso povo, já que a educação e a cultura são pilares que sustentam o desenvolvimento e o crescimento de toda sociedade. O PNC vai valorizar o nosso povo, com tanta pluralidade de hábitos, costumes e artes. Além de definir princípios e objetivos para a área cultural nos próximos dez anos, a proposta discrimina os órgãos responsáveis pela condução das políticas para a área e aborda aspectos relativos ao financiamento. É um instrumento legal e de controle da sociedade para o cumprimento de metas de desenvolvimento cultural de caráter plurianual. O projeto resgata valores da educação e da cultura, sendo esta importante ferramenta para alcançar mentes e corações de estudantes, melhorando as condições e a contextualização do ensino e mostrando aos nossos alunos que a cultura e o ensino são moldes para fazê-los crescer como seres humanos. O plano visa propiciar o desenvolvimento cultural e integrar as ações do poder público para a valorização do patrimônio cultural brasileiro. Como diz o texto, será regido pelos princípios de diversidade cultural, de respeito aos direitos humanos, de responsabilidade socioambiental e de valorização da cultura como um vetor do desenvolvimento sustentável. Visa também estimular a produção, a promoção, a difusão e a democratização do acesso aos bens culturais; a formação de pessoal qualificado para a gestão do setor; e a valorização das diversidades étnica e regional. A história demonstra que tem havido um processo de exclusão da maioria de nossa população. Nossas crianças e nossos jovens, embora herdeiros de um grande patrimônio cultural e criativos o suficiente para enriquecê-lo, não conseguem ver seu próprio rosto na grande produção cultural dominante. A política cultural tem sido privilégio de poucos, que dividem entre si os recursos, sejam eles públicos ou privados, destinados à criação e à produção cultural. Desde 2005, com a aprovação da emenda constitucional nº 48, o Ministério da Cultura trabalha no tema. Vários fóruns de debates e estudos trouxeram subsídios à formulação do plano e garantiram o aprimoramento das diretrizes que agora orientam a execução das políticas culturais de todo o país. Um dos objetivos dos fóruns regionais era o de fortalecer a ação do Estado no planejamento e na execução das políticas culturais. Nossa proposta, ao criar o PNC, é estabelecer a transformação das políticas culturais como políticas estratégicas do Estado. Transformado em lei, permitirá ampliar o acesso dos brasileiros aos produtos culturais. Na medida em que cresce o acesso à cultura, aumenta o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e diminui a violência do país.


GILMAR MACHADO, 49, professor de história, é deputado federal reeleito (PT-MG), autor do Plano Nacional de Cultura e vice-líder do governo no Congresso Nacional.

&&&&&

Corte Interamericana de Direitos Humanos vai discutir Guerrilha do Araguaia

Especialistas afirmam que país deve ser condenado por tortura, desaparecimento forçado de 70 pessoas e detenção arbitrária
Fonte: UnB.br 26/11

A ação do Exército que exterminou a guerrilha do Araguaia, nos anos 1970, será julgada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sede na Costa Rica. O processo 11.552, movido por Julia Gomes Lund, busca responsabilizar o governo brasileiro por detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas. A expectativa é que a decisão seja anunciada até o fim do ano.

Julia é mãe de Guilherme Lund, desaparecido desde 1973, quando tinha 26 anos. O jovem militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) mudou-se para a região do Araguaia (TO) em 1970, para participar do movimento armado contra a ditadura.

Diz o processo: “A Comissão Interamericana de Direitos Humanos submete o caso à Corte porque (...) as medidas legislativas e administrativas adotadas pelo Estado restringiram indevidamente o direito de acesso à informação dos familiares; e porque o desaparecimento das vítimas, a execução de Maria Lúcia Petit da Silva, a impunidade dos responsáveis e a falta de acesso à justiça, à verdade e à informação, afetaram prejudicialmente a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos e da pessoa executada”.

A comissão é um órgão de apuração. Colhe depoimentos de ambas as partes e encaminha para a Corte, composta por sete juízes oriundos de países membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) e que compõem a Corte.

SANÇÕES – O Brasil é signatário de acordo com a OEA, por isso está submetido às decisões da Corte. “O governo poderá ter que realizar medidas reparatórias, como indenização das famílias, a formulação de novas leis que garantam o acesso à informações e a abertura dos arquivos, que deverá ser ampla e irrestrita”, avalia Emerson Masullo, colaborador do Núcleo de Ciências Políticas da UnB. “Essa decisão vai promover o resgate da memória do país”, afirma.

Masullo acredita que, como a Relatoria Especial da OEA para Assuntos de Liberdade de Acesso à Informação tem acompanhado o caso, podem ser abertos precedentes na América Latina. “O Brasil, assim como El Salvador e a Guatemala, estão longe da realidade mexicana e chilena de liberação dos acessos de dados públicos”, analisa. Masullo ressalta que a Corte não pode obrigar o Brasil a acatar a decisão, mas pode determinar sanções como embargos econômicos.

“O julgamento por si só traz à tona questões da repressão e isso pode se cruzar com outros aspectos da ditadura”, diz Albene Miriam Ferreira Menezes, coordenadora do Núcleo de Estudos do Mercosul e professora do Departamento de História. Ela acredita que há chances de condenação. “Normalmente, as cortes de Direitos Humanos têm o perfil de condenar ações desse tipo”, avalia. Masullo concorda com a professora e afirma que “a condenação é dada como certa.

Segundo a historiadora, caso haja condenação é possível que outras questões relacionadas à ditadura venham à tona. “Temos na presidência um homem que participou de importantes greves durante a década de 1980 e uma presidenta eleita que fez parte da resistência em anos duros”, afirma Albene, sobre o contexto histórico e político do julgamento. Para ela, há possibilidade inclusive de serem criados precedentes para outras ações, como a revisão da Lei de Anistia. “Isso pode ser um trunfo para pressionar a liberação de arquivos que estão guardados e ter um significado em cadeia em relação à revisão da Lei”, explica.

A possível liberação de documentos sobre o período seria reveladora para a história do país. Segundo Masullo, mesmo quem viveu sob os anos de chumbo pode não estar preparado para enfrentar o resgate da memória. “Isso vale tanto para vítimas quanto para torturadores. Uma coisa é abrir os arquivos. Outra será se deparar com fotos publicadas em jornais e revistas”, disse. “Lembrar de memórias como essas será desagradével, mas é necessário”, completa.

Em 29 de abril deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou a revisão da Lei da Anistia, que permitiria punir torturadores e assassinos da ditadura. “Só o homem perdoa, só uma sociedade superior qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos de humanidade é capaz de perdoar. Porque só uma sociedade que, por ter grandeza, é maior do que os seus inimigos é capaz de sobreviver”, disse o ministro Cezar Peluso durante a sessão. Os ministros Ricardo Lewandowski e Carlos Ayres Britto foram os únicos que votaram pela revisão. O caso foi julgado improcedente por 7 votos a 2.

domingo, 28 de novembro de 2010

&&&&&

FERREIRA GULLAR

Fonte: folha.uol.com.br 28/11


Morte com data certa

Na cama, antes de dormir, lembrava-se dela, daquele sorriso, daqueles cabelos ruivos presos na nuca


ELE A viu, pela primeira vez, numa fotografia. No mezanino da escola, na parede oposta à dos janelões, havia uma série de fotos que documentavam alguns momentos memoráveis daquele estabelecimento formador de quadros políticos que teoricamente iriam mudar a face do mundo.
Não obstante, ali se realizavam reuniões festivas de que participavam diretores, professores, alunos e tradutores. Lina era uma tradutora e, sem sombra de dúvidas, a mais linda de todas.
Ela ocupava, em primeiro plano, o canto esquerdo da foto, os cabelos presos na nuca e um sorriso que lhe iluminava o rosto redondo de menina. Calçava botas de cano alto e uma saia justa que lhe deixava à mostra os joelhos.
Era como uma fada jovem, numa aparição de encanto, naquele universo político-ideológico. Suspirou, certo de que aquela mulher estava fora de seu alcance, fora do alcance mesmo de seus olhos. Seria, talvez, uma visitante, que ali aparecera como convidada em alguma das festas.
Viu a tal foto na primeira semana de sua chegada ao instituto, quando os cursos mal se iniciavam e as turmas ainda estavam incompletas. Poucos dias depois, as aulas começavam e foi aí que a viu em pessoa, lanchando na "stalovaia" da escola. Ela estava numa mesa próxima, tomando café e conversando com um grupo que falava espanhol.
Em determinado momento, seus olhos se cruzaram, mas ela logo se voltou para alguém, disse-lhe alguma coisa ao ouvido e riu discretamente. De noite, na cama, antes de dormir, lembrava-se dela, daquele sorriso, daqueles cabelos ruivos presos na nuca.
Soube depois que era tradutora encarregada dos coletivos de alunos de língua espanhola, todos latino-americanos. Como os brasileiros se enturmavam com estes, também se davam com ela e foi assim que, certa tarde, na mesma lanchonete, ela sentou-se na mesa em que ele estava com um casal carioca.
Foram apresentados e ela não pareceu dar maior importância ao fato, embora ele tivesse a impressão de que o seu olhar de algum modo a perturbava.
Por sorte, algumas semanas depois, houve uma festa promovida pelo coletivo argentino, com tangos e tudo o mais, e nessa noite ele a tirou para dançar. Disse-lhe ao ouvido que a achava linda ("ótin craciva") e ela empalideceu. Quando a festa acabou, ela, nervosa, sussurrou-lhe que a esperasse na estação do metrô. Pouco depois, tomavam o trem, desciam na estação perto da casa dela e, já de mãos dadas, penetravam num parque escuro e deserto àquela hora da noite.
Puxou-o pela mão, sentaram-se num banco e ela, sorrindo, soltou os cabelos ruivos que lhe caíram encantadoramente sobre o rosto. Tentou beijá-la, mas ela se esquivou, ergueu-se do banco e o levou pela mão até à porta do edifício onde morava. Ali, beijou-o na testa e, com um adeusinho, sumiu no portão. Ele, de volta a seu quarto na "abchejite", mal acreditava no que acabara de viver.
Ela era casada, vivia com o marido mas já não eram marido e mulher; é que, no socialismo, se o casal ganhara um apartamento, não tinha direito a outro, pouco importando se o casamento acabara ou não. Na primeira noite em que ela o levou à sua casa, o marido ainda não havia chegado. Serviu-lhe um jantar, na cozinha, e ele, não podendo conter-se, declarou-se apaixonado por ela. Foi então que Lina lhe ofereceu a boca para um beijo que jamais esqueceria.
O marido, Andrei, chegou lá pelas nove horas. Beberam vodca juntos e, como nevasse muito, aproveitou para dormir lá mesmo, no sofá da sala. De manhã, quando o marido se preparava para ir trabalhar, fingiu que ainda dormia e só se levantou depois que ele se foi. Aí entrou no quarto, jogou-se sobre Lina na cama e se amaram loucamente.
Mas aquele amor tinha data certa para acabar: terminaria o curso e ele teria de deixar o país. Na véspera da partida, foi para a casa dela e lá ficaram, os dois, de mãos dadas, beijando-se e chorando. Nem ele podia ficar nem ela podia mudar de país. Sem alternativa e para não perder o metrô, decidiu ir embora, sabendo que nunca mais a veria na vida. Mesmo assim, saiu e atravessou o parque, como um autômato.
Na manhã seguinte, como um autômato, foi para o aeroporto, entrou no avião e partiu. Faz 37 anos e seis meses. Nunca mais se viram.

%%&&&&&

Conceição faz o primeiro alerta ao Governo Lula

"Brasil precisa se proteger e cuidar das contas externas"

Fonte: Cartamaior.com.br 26/11

A economista Maria da Conceição Tavares defendeu nesta sexta-feira, durante a Conferência do Desenvolvimento, promovida pelo IPEA, em Brasília, que o Brasil deve proteger sua economia, reverter o processo de sobrevalorização do real e adotar mecanismos de controle de capital para evitar um ataque especulativo. Em sua fala, ela deixou algumas sugestões para o futuro governo Dilma: "Eu diria que a primeira preocupação agora é, sem dúvida nenhuma, com o setor externo. Se ele continuar assim vai haver degradação da indústria, déficit crescente da balança de pagamentos e uma fragilidade externa que na crise de 2008 nós não tivemos". O artigo é de Katarina Peixoto.

O sexto painel da Conferência do Desenvolvimento, promovida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em Brasília, apresentou um tema abrangente e desafiador: Macroeconomia e Desenvolvimento. Um tema à altura da homenagem feita pelo IPEA aos 80 anos da professora Maria da Conceição Tavares, formadora de mais de uma geração de economistas brasileiros. Bem humorada, ela brincou com a relação entre a homenagem e o tema escolhido para a conferência:

“Esta homenagem está gloriosa, porque o clima é Woodstock, não é. Vamos ver se sou capaz de tocar guitarra elétrica. O tema proposto para mim, só tocando guitarra elétrica. Macroeconomia e desenvolvimento não são temas pensados conjuntamente, geralmente”.

O propósito da política macroeconômica, lembrou, é evitar os desequilíbrios. E agora mais do que nunca em função da crise econômica mundial. Maria da Conceição Tavares fez um rápido resumo do quadro atual.

“Neste ano que passou foram os países ditos emergentes que cresceram. O primeiro mundo não cresceu nada. A crise de 2008, agora em 2010, veio repicada com a crise na Europa. A política macroeconômica na Europa deve estar fazendo Keynes se remover na tumba. Um desemprego cavalar e eles vêm com ajuste fiscal. Além de tudo há uma pletora de dólares. O Banco Central europeu está sustentando os países mais pobres da UE, mas o problema não é de liquidez, mas de insolvência”.

Frente a essa situação, alertou, o Brasil precisa ficar atento:

“Nossa taxa de juros é historicamente cavalar. Não é uma maluquice do presidente do Banco Central. Desde a década de 70 que a taxa de juros primária é muito alta. E as taxas ativas dos bancos também são muito altas. Então estamos numa situação braba: que tipo de investimentos essa taxa de juros elevada atrai? O investimento direto não tem nenhum problema, desde que sejam estertores importantes do desenvolvimento. Mas nossas taxas de juros fazem com que sejamos atrativos para o capital especulativo. Resultado: estamos com uma grande sobrevalorização do real”.

Diante deste quadro, acrescentou, a economia brasileira precisa se proteger, não apenas dos Estados Unidos, mas também da China. Neste ponto, ela fez algumas advertências importantes ao governo Lula e, principalmente, ao futuro governo Dilma:

“Temos aumentado desvairadamente as importações. Está um festival de importação. Nós estamos diminuindo o conteúdo de valor agregado de nossa indústria, até com coeficiente em importação em aço, no qual temos competitividade internacional, temos 15% da importação em aço. Há sobra de aço na Europa, que está fazendo dumping para cima da gente e nós deixamos. Eu diria que a primeira preocupação agora é, sem dúvida nenhuma, com o setor externo. Se ele continuar assim vai haver degradação da indústria, déficit crescente da balança de pagamentos e uma fragilidade externa que na crise de 2008 nós não tivemos. Foi a primeira vez que o Brasil passou por uma crise sem se arrebentar. Ao contrário, somos credores líquidos internacionais. Passar dessa situação, outra vez, para devedor líquido é péssimo. Só não passamos a tanto porque o governo é credor líquido. Mas as grandes empresas, o capital privado já está devendo. O que significa que qualquer repique da crise internacional pode nos trazer problemas”.

O governo tem de estar atento, enfatizou a economista, para não agravar o déficit fiscal. “A inflação é de custos, não de demanda. Então, não é o caso elevar taxa de juros, para não agravar o déficit fiscal, aumentando o serviço da dívida. Isso tira a possibilidade de desenvolvimento. Como se faz desenvolvimento com uma taxa de juros dessas?” - indagou.

A economista garantiu que não discutiu pessoalmente esses temas com ninguém do governo. E reafirmou a defesa da adoção do controle de capitais para proteger o país de um ataque especulativo.

“Já disse publicamente e repito, penso que numa situação como essa tem de ter controle de capitais. Todos os controles quantitativos. Aumenta o compulsório. Controla a taxa de crédito. Mas não com essa taxa de juros. Mesmo que o FMI tenha dito que controle de capitais pode ser recomendado, na atual conjuntura, o “mercado” e “os do mercado” aqui no Brasil não suportam ouvir isso. Mas temos no Banco Central gente discreta, não vedetes. Eu acho que a mudança do presidente do BC se prende a isso”.

O Brasil, recomendou ainda a economista, precisa fazer uma política fina e ir diminuindo lentamente a taxa de juros e a taxa de câmbio. “Devagar com o andor que o santo é de barro. Tem de andar devagar”, enfatizou.

E criticou aqueles que defendem o corte de gastos para promover um duro ajuste fiscal.

“O eixo deste governo é a política econômica com eixo social. Esse é o nosso custeio. Cortar para investir, para agradar a imprensa? Eu acho que não há sentido nenhum. No desenvolvimento econômico, o eixo social está correto. Mas se não cuidarmos da parte cambial, não conseguiremos fazer política industrial e tecnológica e, no longo prazo, não há desenvolvimento econômico regredindo nessas coisas”.

Maria da Conceição Tavares manifestou confiança na capacidade da presidente eleita Dilma Rousseff enfrentar esses problemas:

“Graças a deus a nossa presidente é uma mulher de coragem, de discernimento e economista competente. Este primeiro ano dela é complicado, em todos os sentidos. Enfim, que deus a proteja. Não adianta pedir que deus proteja individualmente nestas questões. Nestas questões é melhor proteger o coletivo”.

“Tenho muita fé na presidente, mas uma coisa é saber, outra é operar – não sei se a proporção de forças dos industriais pesam tanto quanto a dos banqueiros. Para sair dessa encrenca, agora mais do que nunca, não dá para deixar para o mercado ou a divina providência. A solução é humana e de todo o governo. Até o fim dessa década vamos erradicar a miséria, para que isso ocorra não podemos fazer coisas que abortem essas intenções.”


O Brasil tem um caminho duro pela frente, concluiu, e “deve agir com a autonomia de um país independente e soberano”. “Precisamos fazer uma defesa soberana da política industrial, cambial e de balanço de pagamentos. Não quero que me impinjam política macroeconômica que me atrapalhe o desenvolvimento. E que não se espere que o G7, G20, o G 400 resolvam alguma coisa, porque a ordem mundial está uma bagunça e o mundo hoje é multipolar. Acho melhor cumprir o nosso papel”.

&&&&&&

sábado, 27 de novembro de 2010

Editores sugerem novo Jabuti em 2011

Fonte: folha.uol.com.br 27/11

Mudanças foram sugeridas após polêmica envolvendo Chico Buarque e Edney Silvestre na edição deste ano

Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, e Sergio Machado, da Record, concordam com novas regras

Com seu característico passo de tartaruga, o cágado jabuti se encaminha para mudanças em 2011. Todos reclamam das atuais regras, e o primeiro a admitir estranheza é o próprio curador do prêmio, mas só no ano que vem começam as discussões oficiais de possíveis transformações no regulamento.
Criado em 1958, o Jabuti ganhou mais relevância nas duas últimas décadas, quando José Luiz Goldfarb assumiu a curadoria e instaurou pagamentos para os jurados e premiações em dinheiro para os vencedores. Apesar de hoje não distribuir tanto dinheiro quanto outros eventos (R$ 30 mil para o Livro do Ano, contra R$ 100 mil do prêmio Portugal Telecom e R$ 200 mil do prêmio São Paulo), o Jabuti ainda é o mais conhecido e prestigiado prêmio literário do país.
É por isso que dois dos editores mais poderosos do país, Sergio Machado, presidente da grupo editorial Record, e Luiz Schwarcz, diretor da Companhia das Letras, vieram trocar farpas em público este mês para defender seus autores finalistas. Nenhum deles confirma que a venda dos premiados cresce nas livrarias, mas concordaram em sugerir mudanças para a próxima edição do Jabuti.
Schwarcz aponta três possibilidades mudanças:
1) Maior investimento no julgamento - Segundo o editor da Companhia, os jurados deveriam receber mais para poderem se dedicar melhor ao julgamento das obras. O aumento de inscrições no Jabuti (de 300 para 3.000 livros nos últimos 20 anos) exige uma dedicação enorme para leitura. Além disso, mais dinheiro significa melhores jurados disponíveis.
"Prêmio literário é a qualidade do julgamento. Se não houver investimento em júri, que os livreiros e editores continuem escolhendo o Livro do Ano", diz Schwarcz.
2) Menos categorias - Vinte e uma categorias é muito, segundo o editor. O curador do prêmio, José Luiz Goldfarb, no entanto, afirma que quem pressiona por mais categorias são os próprios editores. "Porque assim eles têm mais possibilidades de ganhar", diz o curador.
3) Mudar para o modelo de "short list" (lista curta) - Para Schwarcz, um prêmio literário não deveria ser encarado como uma competição tão acirrada. "Prêmio com primeiro, segundo e terceiro lugares só existe no Brasil. O National Book Awards, o Goncourt, o Booker Prize, não têm segundos lugares. Anunciam uma "short list", com umas cinco obras, e depois o vencedor."

FALTA DE LEITURA
Apesar de se colocar contrário a Schwarcz na atual discussão, o dono da Record, Sergio Machado, aponta sugestões parecidas às do colega. Duas são as mesmas:
1) Menos categorias -"Realmente é muita coisa. Ganhar uma delas acaba tendo pouca significação", diz Machado.
2) Mudar para o modelo de "short list"
E sugere outras duas:
3) Um livro do ano, seja ficção ou não. "Acho que não deveria ser dividido. Um único livro, aquele que foi o mais importante, seria mais interessante".
4) Os 500 associados deveriam ler o livros que julgam -"Quando você coloca 63 livros (3 de cada categoria) para ser escolhido como livro do ano, tenho certeza que os 500 associados não leram todos. Se esse número diminuir bastante, poderíamos exigir uma declaração dos votantes de que leram todos os concorrentes antes de votar", sugere Machado.
José Luiz Goldfarb diz que as discussões da comissão começam em janeiro. "Em março ou abril, lançaremos as regras oficiais."
Para ele, apesar de toda a polêmica, a premiação do Jabuti foi coerente. "Prova disso é que tanto Chico quanto Edney venceram outros prêmios neste ano. OK, podem estar todos errados. Mas por trás da subjetividade do júri, existe uma coerência."

&&&

Politização da polêmica lembra clima ideológico dos anos 60

Fonte: folha.uol.com.br 27/11


A polêmica do Jabuti é o novo e radicalizado capítulo da rivalidade entre Record e Companhia das Letras, que remonta a antigas contendas editoriais. Ambas já se enfrentaram na disputa sobre o melhor modelo de divulgação do livro no país: Flip ou Bienal? Agora, o único ponto pacífico é a necessidade de reformar o Jabuti.
Não estão em jogo, porém, apenas questões comerciais de um mercado em expansão, mas também o "prestígio" (moeda com alto valor de face nas editoras) e sobretudo a recente politização da cultura no país, travada pela militância na internet.
A polarização, afinal de contas, se dá entre a editora que abriga em seu catálogo Reinaldo Azevedo, Merval Pereira, Demétrio Magnoli, Ferreira Gullar e Mario Sabino, autores de perfil crítico ao governo Lula, e a casa editorial de Chico Buarque, José Miguel Wisnik, Marilena Chaui, Roberto Schwarz e outros símbolos da esquerda.
Não se via clima parecido desde os anos 60, quando os editores brasileiros eram sobretudo missionários ideológicos como Ênio Silveira ou Carlos Lacerda. As claques e vaias dos blogs lembram a sede de unanimidades dos festivais de música popular.
Não deixa de ser curioso que a "direita" lance mão de um expediente "esquerdista", uma petição on-line, na tentativa de "bullying" literário de Chico Buarque. Embora não seja unanimidade, Chico passou pelo crivo do público e da crítica. Estreante premiado, Edney Silvestre ainda precisa encontrar defensores além de seu editor.
A guerra nos blogs mostra que a rede não é boa conselheira quando se trata de crítica literária. Em outras palavras, quem quiser ler um bom romance nas férias de verão e estiver indeciso entre o de Edney e o de Chico dificilmente verá critério crítico na polêmica do Jabuti.

&&&&&

Herdeiros levam DNA de Glauber ao Festival de Brasília

Fonte: folha.uol.com.br 27/11

Filhos do cineasta demonstram a verve do pai ao apresentar longa de ficção e filme inédito do diretor

Enquanto Eryk exibiu "Transeunte", montado pela irmã Ava, Paloma levou restauração de "Leão de Sete Cabeças"


Sempre se diz, no cinema brasileiro, que são muitos os filhos de Glauber Rocha (1939-1981). É que o cineasta, que morreu aos 42 anos e produziu freneticamente, serviu de farol a seguidas gerações. Mas, no caso do Festival de Brasília, a referência não tem nada de metafórica. São, de fato, muitos os filhos de Glauber aqui presentes.
Anteontem à noite, Eryk Rocha subiu ao palco do Cine Brasília com a emoção à flor da pele. Dedicou sua primeira ficção, "Transeunte", à mãe, a também cineasta Paula Gaitán, presente à plateia, e ao pai, Glauber.
Ao apresentar a equipe do longa, fez com que descobríssemos que estava ali também sua irmã Ava Rocha, montadora do filme.
E na segunda outra integrante do clã, Paloma Rocha, espalhará o DNA glauberiano pelo palco. Ela apresentará a cópia restaurada de "Leão de Sete Cabeças", feito em 1969, no Congo-Brazzaville. O porta-voz do cinema novo foi para a África após ganhar o prêmio de direção em Cannes com "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro".
O filme africano de Glauber, o primeiro do exílio, não só não tinha uma cópia nacional como jamais fora lançado aqui. Graças a uma parceria entre as cinematecas brasileira, a de Roma e a Secretaria da Cultura da Bahia, uma nova versão, com legendas em português, fará com que o filme possa ser descoberto pelo público.

ESTÉTICA ÍNTIMA
Além do gosto pelo cinema, Paloma e Eryk herdaram do pai a verve. Ambos falam como se estivessem discursando e, tamanho o entusiasmo, acabam por entusiasmar também o interlocutor.
É assim que Paloma define a importância do renascimento de "Leão". Foi assim que Eryk apresentou seu filme ao público.
Em entrevista à Folha, o diretor, autor dos documentários "Rocha que Voa" e "Pachamama", definiu o seu novo trabalho como uma ficção amalgamada ao documentário.
"O centro do Rio é um personagem. A gente não fechou nem uma rua nem um bar. O acaso foi transformando a história", diz Eryk, 32.
"Transeunte", filmado em Super-16, com belas imagens em preto e branco, segue pela rua o aposentado Expedito (Fernando Bezerra), um entre mil solitários que a cidade anonimamente acolhe.
O tempo do filme é o tempo da vida que passa lenta, esgarçada pelas pessoas que morreram e pela rotina de poucos afazeres. A estética perseguida pelo diretor é aquela que, como pregava seu pai, não mimetiza o cinema bilionário. Ao contrário.
"Transeunte", que traz canções de amor a alinhavar a narrativa de poucas falas, estabelece, com o espectador, uma preciosa relação de intimidade.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

&&&&&

Inéditos de Mário de Andrade

Fonte: valoronline.com.br 26/11

Reportagem de capa: Romance inacabado, críticas de cinema e obra sobre preconceito escritos por Mário de Andrade serão editados em livro pela primeira vez em coleção.

"Preto": este foi o nome com que Mário de Andrade, ele próprio mulato, batizou a pasta na qual reuniu anotações de trabalho e escritos sobre as questões de "cor" no Brasil. Em tese defendida na Universidade de São Paulo (USP) há uma semana, a pesquisadora Angela Teodoro Grillo apresentou o resultado do estudo sobre o conjunto de 371 documentos da pasta, equivalentes a cerca de 20 anos de pesquisas do autor, do fim dos anos 1920 até sua morte, em 1945. A maioria dos textos é inédita e, entre eles, está uma preciosidade: um ensaio de 16 páginas datilografado e sem título, datado de 1938, no qual Mário expôs suas ideias sobre o preconceito racial no país.

A pesquisa confirma que, embora não tenha sido militante do movimento negro, Mário manteve uma preocupação constante e profunda com o tema. A partir dessa nova perspectiva, torna-se possível reinserir o autor de "Macunaíma" no debate sobre o preconceito, polêmico até hoje no Brasil.

As descobertas de Angela serão publicadas no próximo ano pela editora Nova Fronteira como parte do projeto de edição das obras do escritor, iniciado em 2007. No início do mês que vem, será lançada a coletânea "No Cinema", também com textos inéditos de Mário sobre a sétima arte (leia mais na pág. 20). Para 2011 a editora planeja ainda a edição de "Café", romance inacabado, nunca publicado, e tema de outra tese, defendida por Tatiana Longo Figueiredo no ano passado. Pesquisadora da obra de Mário desde 1993, Tatiana ainda descobriu recentemente, no arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP, o poema "Fox-Trot", de 1925, que, por fazer alusão ao cinema - "Carlito anda fox-trot./ Todos os homens Carlitos insinceros" - será publicado na nova coletânea sobre o tema, organizada por Paulo José da Silva Cunha.

Agência reminiscências

Mário de Andrade (à esq., em pé e inclinado) com organizadores da Semana de Arte Moderna, entre eles Manuel Bandeira (o segundo da esq. para a dir.) e Oswald de Andrade (no centro, sentado no chão)

Tatiana desvendou como Mário se dedicou ao que seria o romance "Café", projeto de fôlego que começou nos anos 1920 e com o qual esteve envolvido até praticamente o fim da vida. O romance teria cinco partes e o personagem central é inspirado no cantador Chico Antônio (1904-1993), que Mário conheceu na cidade de Natal, em uma viagem etnográfica em 1928. Na primeira parte, conta como era São Paulo quando esse migrante chega de trem pela Estação da Luz. O personagem se depara com o burburinho de uma cidade estranha para ele, com muitas luzes, muitos apelos, inclusive sexuais. "O primeiro capítulo terminaria com a ida de Chico Antônio para a fazenda", conta Tatiana.

O escritor redigiu três versões para essa parte. Da segunda, já na fazenda, há apenas uma versão e as demais não chegaram a ganhar corpo. O trabalho permitiu a Tatiana acompanhar o processo criativo de Mário, "de uma complexidade muito grande". A crise de 1929 e a guerra, nos anos 1940, são fatos que influenciaram a redação. "A princípio, Mário pensava num romance que seria mais psicológico, mas, com a guerra, ficou muito incomodado e resolveu destacar elementos mais sociais, através de Chico Antônio, por exemplo. Em sua opinião, a arte precisava ser mais engajada. Chegou a dar uma entrevista, nessa época, para o jornal 'Diretrizes', dizendo que os intelectuais haviam se vendido aos donos do poder", conta.

A crise de 1929 também fez Mário repensar o impacto que teria uma geada sobre a fazenda, pois os problemas que iriam enfrentar não poderiam decorrer somente do ambiente.

Já o ensaio de Mário sobre preconceito racial chama a atenção porque o escritor conseguiu ampliar a discussão num período em que as teorias sobre democracia racial eram discutidas por intelectuais como Arthur Ramos (1903-1949) e Gilberto Freyre (1900-1987). "Mário não buscava apagar a existência do preconceito. Atestava sua existência no Brasil, antecipando ideias que seriam defendidas anos depois por intelectuais como Roger Bastide [1898-1974] e Florestan Fernandes [1920-1995]", afirma Angela Teodoro Grillo.

Mas se para Florestan preconceito racial e de classe se ligam, para Mário o preconceito existe independentemente da classe social. "Mário adianta e ultrapassa as ideias de Florestan. É um grande nome para participar desse debate."

A tese foi orientada pela professora Telê Ancona Lopez, coordenadora do amplo projeto temático de estudo do processo de criação de Mário de Andrade, a partir de seu arquivo, preservado desde 1968 pelo IEB. O trabalho de Angela, diz Telê, mostra como Mário dialogava com outros intelectuais sobre o tema. Em sua opinião, trata-se de "um escritor brasileiro" - e não afro-brasileiro - "que soube, muito bem, captar o negro em sua arte e buscar a compreensão da cultura negra brasileira, em seus estudos de cunho antropológico".

A professora é autora de "Ramais e Caminhos", de 1972, único estudo que já havia sido publicado até hoje sobre as ideias de Mário sobre o preconceito. O ensaio se baseia em dois artigos publicados na imprensa pelo próprio autor, "Linha de Cor" e "Superstição da Cor Preta". Agora, a pesquisa de Angela indica que esses dois textos têm como matriz o artigo inédito de 1938, o qual, para facilitar a referência, ela intitulou como "Estudo da Superstição da Cor Preta".

A história da escrita do texto, com lances novelescos, revela até que ponto Mário estava envolvido com a causa dos negros. O ensaio data de 7 de maio de 1938 e foi redigido para a comemoração do cinquentenário da Abolição, embora possivelmente não tenha sido apresentado. Para celebrar a efeméride, Mário, então diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo - cargo que ocupava desde 1935 -, organizou um ciclo de conferências para o qual convidou ilustres intelectuais negros. Também planejou festividades que previam atividades em parques infantis e bibliotecas, concertos especializados de música negra e, por fim, uma congada nas ruas de São Paulo, algo bastante ousado para a época, segundo Angela.

O ciclo de conferências chegou a ser realizado entre 27 de abril e 11 de maio, no Palácio do Trocadero, no centro de São Paulo. No dia 2, houve até mesmo uma sessão solene organizada por associações negras, da qual Mário de Andrade participou, no Teatro Municipal. No entanto, antes do fim do ciclo se deu uma reviravolta: no dia 9, o prefeito Fábio Prado foi substituído por Francisco Prestes Maia, nomeado pelo Estado Novo, num dos seus anos mais truculentos. Mário renunciou no dia 11, possivelmente sem conseguir proferir a conferência, marcada para a véspera. As demais festividades acabaram sendo canceladas e o número comemorativo da "Revista do Arquivo Municipal", já sob a direção do substituto de Mário, Francisco Pati, publicou apenas cinco das dez conferências apresentadas, nenhuma dos autores negros que participaram do evento.

Mário acreditava que os intelectuais negros deveriam ter mais brilho em suas intervenções. "Ele instiga os negros a pensarem se eles mesmos não teriam preconceito de cor", afirma Angela. Com o intuito de fundamentar a presença do preconceito na sociedade, o autor colecionou, com seu tino de etnógrafo, uma série de provérbios, ditos e quadrinhas populares que comprometiam a figura do negro. No próprio texto da conferência destacou: "Há toda uma série de provérbios detestáveis para demonstrar pelas variantes de vocabulário a distinção entre o homem branco e o homem negro. São os provérbios em que se nega ao negro o direito de usar para si palavras usadas em relação aos brancos nos seus atos tanto individuais como sociais. Eis alguns: 'Negro não fala; Resmunga'; 'Negro não come, Babuja'; 'Negro não dorme, Cochila'; 'Negro não pare, Estóra' (...)".

As notas de trabalho reunidas na pasta indicam que Mário planejava escrever uma obra de vulto sobre a questão. Um dos aspectos que mais lhe interessam é o que chama de superstição, ou seja, como a cor preta seria carregada de negatividade. "Mário utiliza inclusive referências bíblicas para mostrar que, com a escravidão, essa superstição, de que a cor preta seria ligada a coisas ruins e ao mal, foi transferida para o homem negro", diz Angela, que vai ampliar sua pesquisa em projeto de doutorado. Uma das questões que pretende aprofundar é a maneira como o negro é retratado na obra publicada do autor - por exemplo, em "Macunaíma", lançado em 1928 e do qual não há referência direta na pasta.

Com o dossiê "Preto", Angela também completa um quebra-cabeça nas "Obras Completas" do autor, cuja organização o próprio Mário havia designado a Oneyda Alvarenga, sua ex-aluna. O dossiê teria de integrar o volume de número 13 (num total de 20) e seria composto de três partes: a primeira se chamaria "O Folclore no Brasil"; a segunda, "Estudos sobre o Negro"; e a última, "Nótulas Folclóricas". Mas Oneyda não achou os textos da segunda parte e só agora, com o dossiê "Preto", a exigência se cumprirá.

A dificuldade de achar o manuscrito se deve, em grande medida, ao tamanho do acervo, composto por cerca de 30 mil documentos, uma biblioteca de 17 mil volumes e uma coleção de obras de arte e peças do folclore. Carlos Camargo, sobrinho de Mário de Andrade, considera fundamental o trabalho que tem sido realizado pelo IEB e pela Nova Fronteira: "Por causa do jeito muito particular que Mário tinha de escrever, usando, por exemplo, o 'i' no lugar do 'e', como 'si' em vez de 'se', há muitos erros na edição de suas obras. A revisão que está sendo realizada é um trabalho bonito de confrontação de originais".

A reedição das obras do autor será intensificada antes que entre em domínio público, em meados da nova década. "É importante que os textos já estejam inteiramente fixados para que se tenha uma matriz confiável", diz Janaína Senna, editora da Nova Fronteira.

Além da coletânea "No Cinema", neste fim de ano a Nova Fronteira reedita "Padre Jesuíno do Monte Carmelo", seu último livro, que concluiu às vésperas da morte, em 25 de fevereiro de 1945. O livro resulta de exaustiva pesquisa de Mário sobre o pintor, entalhador, arquiteto e músico setecentista. Também será reeditado o volume "Modinhas Imperiais", obra que Mário dedicou a Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Mas a lista dos livros que virão é extensa. Além dos inéditos e do volume de poesia, está prevista já para 2011 nova edição de "Contos Novos".

Outros livros ampliarão ainda mais o olhar sobre Mário no próximo ano, como "Da Tradução Poética" e "Os Filhos da Candinha II: Crônicas Críticas", preparados, respectivamente, por Sônia Marrach e Gabriela Betella. "Também 'O Pico dos Três Irmãos', com crítica de poesia, e 'Zoofonia', a partir de trabalho de Marcos Moraes e Flávio Penteado, obras pensadas para 2012", afirma Telê Ancona.

Além disso, ao lado de Tatiana Figueiredo a professora pretende lançar uma nova edição de "O Turista Aprendiz", com um primeiro diário, o das imagens e legendas do Mário fotógrafo. "Quanto ao modernista, em 'Crônicas de Malazarte', edição sob minha responsabilidade, vamos mostrar suas importantes cogitações a respeito de vanguarda no Brasil em 1923 e 1924", diz Telê.

O próximo ano será importante ainda por outra razão: o Projeto Temático no IEB planeja publicar, em catálogo analítico e também em seu site, a totalidade dos manuscritos da criação de Mário de Andrade. Tatiana Longo Figueiredo, envolvida nesse trabalho de reconstituição, não tem dúvida de que ainda há muito o que aprender sobre o escritor: "É uma figura que tem sido bastante estudada, mas muito mais coisa precisa ser feita e descoberta. Mário se interessava por muitos assuntos e sempre contou com grande embasamento teórico de leitura, recorrendo ao que havia de mais novo na sua época. Ele procurava ler e estudar. Era um perfeccionista."

Embora realize pesquisas sobre Mário há quase 20 anos, Tatiana sempre se surpreende com as descobertas. O mesmo sentimento é compartilhado por Telê. Na Equipe Mário de Andrade, ligam-se projetos de iniciação científica, mestrados, doutoramentos e pós-doutoramentos. "Todos procuram acompanhar todos os projetos em curso, numa interlocução generosa e rica", afirma Telê. Em poucas palavras, ela busca definir o autor ao qual dedicou a vida profissional: "Mário mestre, consciência sem repouso, criação sem cadeias".